Ao longo dos anos
assistimos, presenciamos ou deixamos de lado a lembrança do "ponto de não
retorno" para os judeus na Europa, a especificamente mal nominada Noite
dos Cristais ou Noite dos Cristais Quebrados. É um nome alegórico, até mesmo
romântico e especificamente inadequado para a compreensão do que aconteceu.
Noite do Terror seria o mais adequado. Noite da Caça aos Judeus, seria um bom
título. Noite das Sinagogas Queimadas, seria o especificamente correto.
Quando eu era pequeno
imaginava Berlim e suas ruas de cristal... O nome se refere às vitrines
quebradas e nenhuma delas era de cristal. Eram de vidro como qualquer vitrine.
O termo em alemão Reichskristallnacht - A Noite dos Cristais do Império - foi criado pela chancelaria nazista e
pela sua agência oficial de notícias. Até hoje se escuta por aí: "E a luz
do luar sobre os cacos das vitrines destruídas fazia-os brilhar e tilintar como
a luz num candelabro de cristal..." Bizarro, mas escrito por
sobreviventes. Acho lamentável que o adotemos sem críticas até hoje.
Se formos perguntar por aí, a maioria dos judeus que acha que sabe o
que foi, vai dizer que aconteceu na Alemanha. Só que o Reich, o "Império" Alemão naquele novembro de 1938 já incluía a Áustria
e a Tchecoslováquia, anexadas alguns meses antes. E o maior pogrom da história
- ataque a judeus pela população e autoridades - foi simultâneo nos três
países. A propagação do conceito de que foi só na Alemanha é dos próprios
sobreviventes do Holocausto. No Brasil este conceito é bem arraigado pois
recebemos uma boa quantidade de judeus alemães a partir de 1933 e após a
guerra. E eles não sabiam realmente o que tinha havido nos outros países.
Existe a versão alemã: um judeu polonês na França atirou num secretário
da embaixada a alemã e ele veio a falecer - no dia seguinte a população
revoltada atacou os judeus e foi controlada pelo governo.
Mas o pano de fundo é outro. Esse ataque estava preparado e aguardando
um momento político adequado para acontecer. Mais cedo, pouco menos de um mês
antes, foi feito um recadastramento obrigatório de todos os judeus, seus
comércios, indústrias e imóveis comunitários e residenciais. Esta "Lista
de Hitler", se tornou a lista para o ataque da Noite do Terror. Alguns
dias antes foi proibida a posse de armas por judeus, que deveriam ir
imediatamente às delegacias entregar suas armas sob pena de prisão. E assim
desarmou-se qualquer tentativa de reação.
Os jornais do dia 9, com nota da United Press do dia 8, mostram um
esquecido ensaio para o dia 10. Poucos jornais publicaram esta nota e a falta
de reação ao balão de ensaio deve ter dado o sinal branco (os nazis não usavam
sinal verde, por causa dos daltônicos) para a Noite do Terror. No dia 8 de
novembro manifestantes fizeram várias demonstrações contra os judeus na cidade
de Kassel, depredaram as lojas de judeus, quebraram suas vitrines, invadiram a
sinagoga e destruíram seu interior. Balão de ensaio mesmo.
O momento político era adequado e o ataque a Von Rath o secretário da
embaixada foi no timming exato. Alguns historiadores acham que Rath foi vítima
dos nazis e foi morto no hospital para aproveitar o caso. Os Estados Unidos
estavam em eleição presidencial, Ataturk morria na Turquia, o Japão conseguia
vitórias decisivas na China e no dia 10 de novembro estavam programadas as
cerimônias pelos 20 anos do final da Primeira Guerra Mundial, com a derrota
alemã. Vale dizer que o dia do armistício foi varrido dos noticiários e
substituído pelo ataques aos judeus. Não esqueça que Hitler tinha na sua cabeça
demente que os judeus eram os culpados pela derrota alemã na WW1.
E você não deve jamais ter ouvido falar, mas na tarde do dia 9 as
potências ocidentais rejeitam uma proposta de Partilha da Palestina em um
Estado Judeu e um Estado Árabe, proposta que seria retomada 9 anos e 6 milhões
de mortos depois.
Certamente você nunca ouviu falar da reação da mídia em relação a Noite
do Terror. Eu garanto a você: foi total e avassaladora! Qual foi o resultado
disso na opinião pública e nas comunidades judaicas? Praticamente nenhum.
Os números da Noite do Terror você vê ao longo do artigo. O importante
aqui é compreendermos o que as pessoas comuns, os empresários, políticos e
formadores de opinião perceberam sobre os fatos e porque a reação não
aconteceu, ou aconteceu de forma ineficaz.
A mídia dominante de 1938 era o jornal. E era um jornal muito maior,
consistente, veloz e contundente que os jornais atuais. A maioria das agências
de notícias que existem hoje, já atuavam há anos naquele momento. Além do
telégrafo, havia fotos enviadas por rádio. E os jornais não a meia-noite como
atualmente. Os jornais de maior circulação tinham três ou até quatro edições ao
longo do dia e as notícias iam mudando, sendo atualizadas e dando lugar a novas
- não eram cópias da primeira edição. Havia jornais que chegavam às ruas no
movimento de ir para o trabalho, no almoço e para o movimento de volta do
trabalho. Alguns eram apenas vespertinos. Então o que vemos hoje como
atualização ao longo do dia na internet, havia ao longo do dia em papel. Algo
que acontecia na guerra entre Japão e China era publicado com foto no mesmo dia
nos Estados Unidos. A notícia dos rincões do mundo circulava praticamente na
mesma velocidade atual.
A diferença de fusos horários permitiu que os jornais da costa leste
(NY) dos EUA e no Brasil, já saíssem com as manchetes de primeira página na
manhã do dia 10 (antes dos jornais alemães) e os jornais do centro e costa
oeste (LA) já com matérias densas e completas na manhã do dia 10. A Inglaterra
e a França só foram noticiadas em seus vespertinos e mais densamente no dia 11.
Não é aqui que vou alinhar os títulos das matérias. Basta sabermos que
estavam na primeira página de todos os jornais com dezenas de notas curtas dos
correspondentes da United Press (ainda não era UPI) e da Associated Press (já
era AP), além da agência alemã com a visão oficial. UP e AP cobriam até mesmo
os discursos de Hitler, publicados em todo o mundo. As notas publicadas no
Jornal do Brasil e na Folha de São Paulo não eram as mesmas dos jornais
americanos. Aqui no Brasil se noticiou até mesmo uma gama maior de fatos que
nos EUA.
Até o dia 15 de novembro o assunto não saiu das primeiras páginas com o
tema de "aumenta a perseguição aos judeus na Alemanha." A
especificação das principais sinagogas destruídas (com fotos), das prisões de
populações inteiras (com fotos) como a de todos os homens judeus de Munique, a
destruição sistemática de cada um dos negócios e comércios de judeus, a ordem
para os bombeiro não apagarem os incêndios, estava tudo nos jornais para todos
lerem e verem.
O que não havia naquele momento, e a maioria das pessoas sequer
compreende esse número nos dias de hoje, é que TODAS as sinagogas da Alemanha,
Áustria e Tchecoslováquia tinham sido destruídas. Só na Alemanha foram cerca de
200. E esse é o número que não dá para compreender. Vivemos em cidades imensas com
25 ou 40 sinagogas no Brasil. Algumas comunidades judaicas estão em cidades com
uma ou três. Então como compreender que havia 200 na Alemanha? E destas 200 a
maior parte era enorme. Eram sinagogas de um quarteirão. Mas havia. E o governo
nazi sequer se vangloriou sobre este número preferindo se calar a respeito.
Os judeus dos três países não puderam contar ao mundo o que aconteceu
realmente, pois nos cinco dias seguintes houve uma avalanche de leis contra os
judeus. Fechamento de todos os jornais, revistas e editoras. Recolhimento dos
aparelhos de rádio. Fechamento de todas as intuições dirigentes comunitárias
(como federações e beneficentes) com prisão de todos os dirigentes
comunitários. No dia 12, o governo nazi estipulou uma multa, na verdade um
confisco de um bilhão de marcos a serem pagos imediatamente pelos judeus
"por danos causados a sociedade alemã devido ao incêndio espontâneo das
sinagogas." Não era mais um número de hiperinflação. Notícias de jornal
afirmam que esse valor - que foi realmente pago - significava 25% de toda a
posse financeira dos judeus alemães (contas, propriedades, aplicações). Mas é
preciso levar em conta que no dia 12 os negócios e as empresas não existiam
mais e o patrimônio das sinagogas também não. Assim esse bilhão é muito maior
que parece.
Então em cinco dias os judeus ficaram sem sinagogas (incluindo praticamente
todos os rolos de torah, livros e objetos litúrgicos e religiosos), sem acesso
à informação que não fosse do Estado, sem produzir informação, sem lideranças, sem
rabinos, sem homens em muitas cidades, sem trabalho, sem renda, sem rumo. Veja
bem! Não são cristais quebrados! São vidas estilhaçadas!
O número de mortos no pogrom só na Alemanha foi de 91 judeus. Dos
presos no dia 9-10 e enviados para Dachau (em Munique) mais de 2.400 morreram.
O número total de judeus presos e enviados para campos de concentração, segundo
os historiadores foi de 30.000, mas segundo os jornais da época foram 56.000 -
havia cerca de 320 mil judeus na Alemanha naquela momento. Os negócios de
judeus atacados e saqueados na Alemanha chegaram a 7.500 lojas e 29 lojas de
departamentos. Não havia mais industrias pertencentes a judeus.
Da comunidade judaica alemã de 1933 com meio milhão de pessoas na
Alemanha, mais de 115 mil judeus saíram da Alemanha nos meses seguintes. A
imigração de judeus alemães e austríacos ficou aberta até setembro de 1941
pouco antes da invasão da União Soviética.
E aí vem outro drama. Plenamente noticiada a perseguição sistemática
dos judeus na Alemanha, nenhum país abriu suas portas para a imigração. Manchete
do Jornal do Brasil de 17 de novembro de 1938: "Estuda-se um plano de
imigração imediatados judeus alemãe para o Brasil". Isso nunca aconteceu. Pelo
contrário: Inglaterra e Estados Unidos fecharam porta e estabeleceram quotas
insuficientes e que mesmo assim nunca foram preenchidas. Para um judeu sair da
Alemanha até 1941 ele precisa mostrar o visto de entrada em outro país. Se o
tivesse, não teria maiores problemas. Países como o Brasil e Argentina não
alteraram sua política de imigração que aceitava trabalhadores rurais. Mas a
sociedade judaica alemã era urbana e isso decretou sua morte.
Este momento após a Noite do Terror também marca a imigração dos judeus
para Xangai e é preciso explicar isso. Na guerra contra a China, os japoneses
invadiram Xangai e ocuparam sua área industrial e de classe populacional mais
baixa. Pararam por ali porque a outra parte da cidade era controlada pela
Inglaterra e uma terceira parte menor, pela França. Os judeus que foram da
Alemanha para Xangai, quase 20 mil, foram para parte inglesa... Você acha?
Negativo. Foram para aparte japonesa. Os japoneses não exigiam visto e
aceitavam qualquer imigrante que desembarcasse, sem perguntas. Já o lado inglês
e francês bateram suas portas aos judeus. Nestas áreas havia judeus ingleses e
russos. Posteriormente, quando o Japão compôs o Eixo com Alemanha e Itália e
invadiu o lado "ocidental" de Xangai, os judeus ingleses, franceses e
russos foram presos como "cidadãos de países inimigos" e os judeus
alemães não foram presos na condição estranha de "cidadãos de país
aliado." Os a japoneses em Xangai prezavam principalmente os profissionais
judeus da área de saúde com ótima formação europeia. A liberdade era tão grande
que havia pelo menos cinco jornais semanais judaicos editados em alemão.
Com a perspectiva histórica correta, sabemos que a intenção nazista
inicial era a de que os judeus fossem embora da Alemanha e para isso lhes foi
retirada o sustento e a cidadania. Cerca da metade foi. Se os outros países não
tivessem fechado suas portas este judeus alemães poderia ter sobrevivido. Mas
não se pode especular se o destino dos judeus soviéticos e poloneses teria sido
diferente.
E a reação dos comunidades judaicas? Não podemos imaginar que em 1938
elas existiam de fato como instituições consolidadas. Aqui no Brasil os
imigrantes russos e soviéticos do final do século 19 e início do 20 ainda
estavam lutando para consolidar o que estabeleceram. HAvia uma luta comunitária
real e desgastante entre os judeus comunistas e os sionistas. Financeiramente estamos
falando basicamente de pequenos comércios e de prestamistas. São pessoas que em
sua maioria mal falam o português. A mídia judaica importante no Brasil era em
yidish e alemão. Foram proibidos pelo governo Vargas apenas em 1940. O programa
de rádio Hora Yidish foi fundado exatamente em 1938. Não olhe para 1938 e
imagine redes de lojas, construtoras, financistas, especuladores, investidores,
poder econômico, político e social. Não havia nada disso. Não havia como exercer pressão. E nos EUA não
era tão diferente assim apesar do maior volume, sem contar que era o país da
segregação racial completa entre brancos e negros, e os judeus eram brancos. Em
meu arquivo possuo uma foto de um bar de estrada entre Baltimore e Washington,
caminho do poder, com uma placa: "atendemos negros e judeus" - isso
deve bastar para compreender o real "poder" judaico americano na
época. As comunidades sequer tinham órgãos políticos ou voz para se expressar
publicamente.
Hoje, grupos que são contra os judeus acham que as lideranças judaicas
no Brasil tem que pressionar Israel para "liberar" os palestinos,
imaginando que há esta ligação e que há essa relevância, quando não há. As
lideranças não conseguem pressionar nem pelo que precisam, muito menos pelo que
estas pessoa querem nos impor, com todo o poder social acumulado até hoje.
Imaginar que em 1938 os judeus poderiam pressionar Vargas ou até mesmo Hilter é
imaginar muito errado.
O governo americano e o inglês foram velozes e incisivos falando contra
Hitler e pelos judeus. Mas olhe o discurso destes governos hoje, sobre os temas
atuais, e você percebe que o que os estadistas falam realmente não capaz de
produzir efeitos reais.
Os grandes jornais americanos são especificamente isentos e alienados
em relação ao nazismo. Falam de "her Hitler" em 1938 como falam da
Angela Merkel hoje. Não há sequer um editorial de opinião condenando o que se
fazia contra os judeus e contra os fatos do dia 10, ou contra o rearmamento
alemão. Se hoje achamos que nossos jornais publicam o noticiário internacional
com "copiar&colar" as notas prontas das agências internacionais,
naquela época era exatamente igual. Não há elaboração das notícias. Só há
colagem. Já os jornais do interior sentam o cacete no nazismo. São jornais do cinturão
cristão americano e bem engajados na denúncia do nazismo e em favor dos judeus,
mas sem influência real nas decisões de estado.
Já os jornais brasileiros além de publicar as notas das agências, são
simpáticos ao nazismo, principalmente o Jornal do Brasil, peça fundamental no
Rio de Janeiro, capital da república. Há uma preferência na localização da
publicação das notas oficiais do governo nazista. Mas não se pode acusar o JB
de não ter noticiado o que se passava com os judeus. Ao longo de novembro chegou a criar uma coluna
fixa sobre a perseguição aos judeus na Alemanha, várias vezes com uma página
inteira de pequenas notas de agências. Quem quis ler, leu. A comunidade judaica
não guarda em sua memória esta leitura e hoje é complicadíssimo ter acesso aos
exemplares do Idishe Press daqueles dias e saber o que era tratado nele. Pelo
abismo da língua, poucos devem ter lido.
Em relação à Folha de São Paulo (então Folha da Manhã) a situação é
pior. No dia 10 em sua primeira página a notícia importante é a morte do Von
Rath. Mas no dia as coisas são restabelecidas. Além de divulgar bem as notas,
ela publicou um editorial para o leitor paulista entender o que era "o
judeu" e porque ele estava sendo perseguido na Alemanha. Esse editorial
praticamente justifica a perseguição e vai de "Judeu Errante em pátria"
para lá. Hoje, seria enquadrado como um editorial antissemita. Nos jornais da
época não encontrei cartas de leitores que falassem sobre o nazismo, indicando
que certamente eram censuradas e não escolhidas.
Infelizmente, hoje a noite, por todos os países será repetida a
lenga-lenga da "Noite dos Cristais" com seu dados e informações
suavizadas e descontextualizadas. Se você chegou até aqui, recebeu uma
informação melhor.
José
Roitberg - jornalista - 09-nov-2011
Coordenador
do Vaad Hashoa Brasil - Comitê do Holocausto Brasil
Yad Vashem
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