quarta-feira, dezembro 2

Raça e literatura: o caso Lobato

http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a2731454.xml&template=3898.dwt&edition=13620&section=1323

obs Vaad Hashoa: links sobre o assunto
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Presidente_Negro
http://www.scribd.com/doc/8440364/O-Presidente-Negro-Ou-O-Choque-Das-Racas-Monteiro-Lobato-1926-13a-Edicao-1979-Editora-Brasiliense - livro para leitura on-line gratuito

Como vc pode ver nas imagens o livro é originalmente de 1926 e não 1928 como citado na matéria abaixo. Seu título original era "Choque das Raças", bem mais direto do que "Presidente Negro". Na época em que foi escrito, certamente entre 1924 e 1925 as teorias raciais eram amplamente aceitas em todo o mundo dando origem ao facismo e nazismo na Europa e a perseguições também horríveis nas colônias africanas e asiáticas de países europeus como Inglaterra, França, Holanda, Portugal e Espanha (não havia ninguém bonzinho ali não). Nos EUA o segragacionismo só terminou nos anos 1970... Lobato, sempre em dia com o mais moderno desfia um ideário racista institucional de arrepiar. Mas não é só neste livro. Se vc for ler Emília no País da Gramática e outros, vai encontrar trechos horrorosos sobre negros e judeus. Mas ninguém gosta de incomodar o ícone nacional. E ninguém também percebe como foi fundamental no enraizamento do racismo brasileiro os livros infantis lidos por toso até o início dos anos 1970. Eu estava procurando pelos textos para mostrar, mas descobri que o que há na web são versões revistas modernas onde os conceitos racistas foram removidos. Preciso pegar os livros originais para reencontrar as referências.

Indicado para o vestibular da UFSC, O presidente negro, escrito em 1928, antecipou o tipo de pensamento que levaria à exterminação dos judeus

A decisão da Universidade Federal de Santa Catarina, de incluir em sua lista de livros indicados para o exame vestibular de 2009-2010 o romance de Monteiro Lobato O presidente negro (1928), reacende o debate sobre o julgamento político de obras de arte. Esquecido por décadas, a última campanha presidencial americana despertou o interesse pela trama, passada nos Estados Unidos de 2228. Como agora se sabe, o escritor imaginou o terror trazido a uma sociedade majoritariamente branca pela eleição de um candidato negro, que consegue derrotar o presidente em exercício, candidato à reeleição, e a candidata feminista. Chamou a atenção da mídia, inicialmente, a coincidência, já que, devido à demora na definição da candidatura democrata, a campanha durante algum tempo foi tripartite. Mas o livro despertou uma polêmica para além desta coincidência, em vista dos discursos racistas de alguns personagens.

O narrador do romance, Ayrton Lobo, enuncia o que o "porviroscópio", aparelho de perscrutação do futuro, revelou, tal como lhe fora comunicado pela cientista Jane Benson. Miss Benson, um misto de gênio recluso, beleza e convicção ideológica, colore a narrativa do que vai acontecer em 2228 nos EUA com sua visão de mundo. Seu comentário retira dos fatos futuros o que terão de apenas contingente, e esclarece que a eleição de James Roy Wilde deve-se à divisão dos brancos em dois partidos, o dos homens e o das mulheres (ou "elvinista"), mas também à fatalidade histórica – a luta de raças. Explica, também, a impossibilidade última de o presidente Kerlog e o presidente eleito, Jim Roy, entrarem em acordo, graças à mesma luta racial.

Do ponto de vista ideológico, o ápice da trama é o capítulo 18, em que se encontra o diálogo entre os dois presidentes na véspera da transmissão do cargo. Único branco dentro da trama a ter qualquer contato pessoal com um negro, o presidente Kerlog fica profundamente impressionado com as qualidade intelectuais e morais do interlocutor. Tudo isso, porém, explicado à luz do pensamento racial: o branco vê no negro uma "expressão biológica suprema" tornada possível precisamente pela segregação. O presidente Kerlog é o único branco, no romance, a fazer o elogio de Jim Roy ("expressão racial incoercível a que chamamos condutores de povos", explica o narrador) e também a enunciar por que os brancos não consentirão em ser governados por um negro. As crenças brotam de um princípio mais profundo: o "Sangue" (em letra maiúscula).

Passemos a palavra a Lobato. No capítulo 18, exorta o presidente Kerlog: "– Pois salvemos a América, Jim! – disse erguendo-se. Açaima tu a pantera negra que meterei luvas nas unhas da águia branca. Um leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes. – Mas a pantera que conte com o revide da águia!', continuou o líder branco [...] A águia é cruel!... Jim Roy retesou-se de todos os músculos [ ...] – Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até no momento em que a América ou rompe sua Constituição e afoga-se num mar de sangue ou submete-se ao meu comando? Kerlog olhou-o firma nos olhos e murmurou com nitidez de lâmina: – [...] Como há razões de Estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante, implacáveis como o fogo. O sangue não raciocina como os filósofos. [...] Como branco só vejo em ti o inimigo a esmagar." Conclui Kerlog: "Acima da América está o Sangue. Acima da justiça está o Sangue. O Sangue tem sua justiça. E para a justiça do Sangue Branco é um crime dividir a América." O protagonista real de O presidente negro, poder-se-ia dizer, é nomeado tardiamente, embora tenha movido as engrenagens da narrativa o tempo todo. Misturam-se no diálogo o desejo dos protagonistas de manter a dignidade do caráter à inevitabilidade biológica da confrontação, mas a questão está decidida desde o começo.

Pensamento racial é aquele que usa a raça como princípio de explicação e ação. Em O presidente negro, a raça é usada para explicar o surgimento de um líder, para explicar o orgulho branco e a ânsia negra de igualdade. Todas as outras supostas fontes são fictícias. Falsa também é a crença em que a cultura e a lei podem prevalecer sobre forças vitais. Talvez, por isso, o racismo do século 20 seja diferente daquele que justificou a escravidão e a colonização. Aqui, há um entrelaçamento entre sangue, alma e raça que desemboca na conclusão de que as visões de mundo das diferentes raças são incompatíveis entre si. O racismo tem consequências práticas e não se detêm até chegar à conclusão: a exclusão mútua das raças. Monteiro Lobato mostrou que a pseudo-lógica do racismo é implacável e só pode levar à conclusão de que é preciso atacar para não ser atacado. É algo parecido os que os teóricos do sangue na Alemanha nazista, como Clauss, concluíram. Ainda que absurda, a hipótese de que o extermínio dos judeus era uma manobra defensiva prevaleceu dentro dos círculos íntimos do nazismo. Hoess, o comandante de Auschwitz, declarou em Nuremberg que Himmler acreditava que os judeus exterminariam os alemães, e por isso era preciso exterminá-los.

Monteiro Lobato antecipou o tipo de pensamento que levaria à exterminação dos judeus, e as coincidências históricas são notáveis. A conferência secreta de Wannsee de 1942 reuniu a cúpula do movimento nazista e determinou o extermínio dos judeus em instalações construídas especialmente para este fim. A "Convenção Branca" de O presidente negro aprova secretamente a "moção Leland" para resolver de vez a questão racial na América. O livro repugna alguns leitores por dar a entender que as simpatias do autor estão do lado do racismo. A defesa da eugenia é posta na boca da personagem mais virtuosa de todas. A ilegalidade e imoralidade da moção Leland quase não merecem comentário. Ayrton Lobo está tão preocupado em seduzir Miss Jane que nem se horroriza com os fatos vindouros que ela revela. Por outro lado, Lobato disse claramente o que o mundo não viu, ou não quis ver até o momento em que já não foi possível ignorar. A seu modo, O presidente negro foi um alerta sobre o que estava por vir. Lobato esclareceu as implicações macabras do pensamento baseado na raça.

Ao ver de alguns, o livro é tão ofensivo que não deveria ser publicado. Ao ver de outros, uma vez publicado, não deveria ser recomendado por um estabelecimento público de ensino. Se recomendado, deveria ter sua recepção previamente dirigida, mediante a advertência de que se trata de obra nociva. A meu ver, a primeira opinião é autoritária. As outras são respeitáveis, mas a meu ver equivocadas. A indicação de leitura de um livro de ficção não significa o endosso destes discursos. Significa que uma obra literária é respeitada como obra de arte, e que ainda por cima é considerada representativa do passado. Mesmo que contenha palavras ofensivas, claramente a intenção da UFSC ao recomendar a leitura do livro não é ofender, mas impedir que um passado em que tais discursos determinaram tantos destinos de vidas seja esquecido.

* Professora de Filosofia na UFSC

POR CLAUDIA DRUCKER *

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