Teólogo - Leonardo Boff
Recordamos neste ano os 65 anos do Holocausto. É terrificante a inumanidade mostrada nos campos de extermínio, especialmente em Auschwitz, na Polônia. A questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos, que perguntaram: como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas, seja de Hans Jonas do lado judeu, seja de J. B. Metz e de J. Moltmann do lado cristão, são insuficientes. A questão é ainda mais radical: como pensar o ser humano depois de Auschwitz?
É certo que o inumano pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a raça ariana-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na terceira categoria, e outras, feitas escravas ou simplesmente exterminadas. O nacional-socialismo tinha a clara consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se transformou em virtude.
O livro mais perturbador que li e que não acabo nunca de digerir se chama: "Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de Rudolf Höss"(1958). Durante os dez meses em que foi interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia, em 1946-1947, e finalmente sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever como enviou 2 milhões de judeus às câmaras de gás. Aí se montou uma fábrica de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a "banalidade da morte" de que falava Hannah Arendt.
Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não unia o extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo e brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos, consciencioso, amigo da natureza, um pequeno-burguês normal. Antes de morrer, escreveu: "A opinião pública pode pensar que sou uma béstia sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração e que ele não era mau". Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.
Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do Fuhrer de exterminar os judeus, então não se deve pensar: vamos exterminá-los. Nunca se questionou porque "o chefe sempre tem razão". Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.
Mas o mal também tem limites e Höss os sentiu em sua pele. Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças brincavam. Sua mãe era empurrada para dentro da câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. "O olhar suplicante da mãe - comenta Höss -, nunca esquecerei". Os policiais os jogaram na câmara de gás. Muitos dos executores não aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.
Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por sistemas totalitários e de obediência cega, sejam políticos, religiosos ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.
Esse risco nos cerca, pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de desequilibrar o sistema Terra e de liquidar, em grande parte, a vida. Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.
http://www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdEdicao=1562&IdColunaEdicao=10802
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