quarta-feira, janeiro 13

Das dores e misérias humanas

Das dores e misérias humanas

http://www.noolhar.com/opovo/vidaearte/940222.html

Setenta anos depois do início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), obras como o recém-editado O Diário de Mary Berg são capazes de surpreender com relatos de sofrimentos sofridos no gueto judeu de Varsóvia

Carlos Eduardo Bezerra
especial para O POVO

26 Dez 2009 - 00h29min

O sofrimento do judeus nos campos de concentração da Polônia são retratados em O Diário de Mary Berg (Divulgação)
Já uma vez me ocupei das cartas em artigo publicado nas páginas de O POVO. Desta vez, ocupo-me do diário. Este, assim como as cartas, biografias, autobiografias e memórias, faz parte da escrita do eu. Confesso que tenho interesse especial por este tipo de literatura.

Setenta anos após o início da Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), as publicações a respeito do tema não deixam de nos surpreender. Apesar da data, o efeito da surpresa em nada parece com o de um presente de aniversário. Surpreendente é o fato de que a maldade e a miséria humanas podem não ter fim.

É ainda mais surpreendente que homens e mulheres, vivendo no caos, conseguiram resistir e manter a lucidez. Este é o caso de O diário de Mary Berg - memórias do gueto de Varsóvia, publicado no Brasil pela editora Monole com tradução de Geraldo Galvão Ferraz.

Alguns críticos afirmam que tantas publicações e filmes constituem uma espécie de indústria do holocausto. Se há tal indústria, não tenho elementos para confirmar. Porém, desconfio da ideologia por trás deste tipo de afirmação.

Estou certo de que tudo que foi publicado e filmado a respeito do holocausto ainda não é suficiente para nos ensinar sobre a garantia dos direitos fundamentais do ser humano. Estes foram atacados não somente na guerra citada. Ainda hoje, eles são atacados em conflitos pelo mundo, inclusive no Brasil.

Assim, O diário de Mary Berg chegou às livrarias brasileiras para nos lembrar que precisamos estar vigilantes. Em edição bem cuidada, com capa dura e excelente tratamento gráfico, o diário ganhou um corpo mais consistente, como também o é o seu conteúdo, um legado importante para todas as gerações, cabendo-lhe bem as palavras do profeta Joel, que servem de epígrafe a este artigo.

As capas desta edição do diário são amarradas com um fio de algodão rústico. Mais do que amarrar, o fio serve para nos lembrar que o conteúdo do diário foi segredado por algum tempo e que escrevê-lo não foi tarefa das mais fáceis. Sua autora podia ser morta se fosse pega com os frágeis cadernos nos quais anotava os fatos ocorridos em sua volta.

O que Mary Berg escreveu é um dos exemplos da chamada literatura de cárcere e, mais especificamente, um exemplo de diário do holocausto, como o é também O Diário de Anne Frank, este bem mais conhecido, e tantos outros diários e memórias que foram publicados após o fim da Segunda Guerra.

Muitas crianças e adolescentes escreveram esses diários como forma de encontrar "algum conforto e manterem-se ocupadas", afirmou Alvin Rosenfeld em seu livro A double dying: Reflections on Holocaust Literature. Portanto, os diários do holocausto são fontes importantes para tentarmos compreender o incompreensível.

Quando os nazistas invadiram a Polônia, Mary Berg tinha 15 anos. A este respeito lemos: "Hoje fiz 15 anos. Sinto-me muito velha e solitária, embora minha família tenha feito de tudo para tornar este dia um aniversário de verdade."

Com idade de Mary Berg não se esperava que uma adolescente visse e registrasse o que ela viveu, sobretudo por ter sido pega de surpresa: "Mal dá para acreditar que há apenas seis semanas minha família e eu estávamos na encantadora estância de Ciechocink [...] eu não tinha ideia do que nos estava reservado."

Estes fatos foram registrados no dia 10 de outubro de 1939, primeira data do diário, que vai até 5 de março de 1944, quando a família Wattenberg chegou a Lisboa e embarcou em direção a NY: "Nosso trem aproxima-se de Lisboa. Posso ver as velas de vários navios. Alguém no nosso vagão acabou de gritar a palavra -Gripsholm-. Essa palavra sueca desconhecida significa -liberdade para nós-."

A mãe de Mary Berg era norte-americana, fato que ajudou os Wattenberg durante os anos de terror vividos no gueto: "Minha mãe pregou na porta seu cartão de visitas com a inscrição -cidadã norte-americana-. Essa inscrição é um talismã maravilhoso contra os bandidos alemães que entravam livremente em todos os apartamentos judeus."

Seu pai era um comerciante de artes sobre quem afirmou: "Estamos novamente em Lodz. Achamos nossa loja e nosso apartamento completamente saqueados. Os ladrões haviam cortado os quadros maiores das suas molduras. Meu pai está triste pela perda do Poussin e do Delacroix que comprou em Paris..."

Mary Berg é uma sobrevivente do gueto de Varsóvia, conhecido pelo maior levante contra o exército nazista ocorrido em 1943. Escrito originalmente em polonês, o diário foi publicado nos EUA, em inglês, antes que a guerra terminasse.

A sua publicação foi parte de uma campanha para alertar o mundo do que ocorria na Alemanha e nos países invadidos pelos nazistas: a fome, o frio, as doenças, sobretudo o tifo, e a maldade levou 6 milhões de judeus à morte, além de ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e quem mais discordasse do Reich.

Dentre as muitas passagens do diário que eu poderia destacar neste artigo, transcrevo uma que me parece especial, pois Mary Berg estava vivendo a sua segunda primavera no gueto. Para uma adolescente aquela não era, certamente, a primavera que ele desejava viver:

"Do outro lado do arame farpado, a primavera está à toda. Da minha janela, posso ver meninas com buquês de lilás, andando na parte ariana da rua. Posso até sentir a suave fragrância dos botões abertos. Mas não há sinal de primavera no gueto. Aqui, os raios de sol são engolidos pelas calçadas cinza-escuro. No peitoril de algumas janelas, crescem hastes finas de cebolas, mais amarelas que verdes. Onde estão meus encantadores dias de primavera em anos passados, os alegres passeios no parque, os narcisos, lilases e magnólias que costumavam encher meu quarto? Hoje, não temos flores, não temos plantas verdes."

Hoje, quando temos flores e plantas verdes, e estamos vivendo a primavera com os ipês amarelos, rosas e brancos floridos, as palavras de Mary Berg em seu diário devem ter o cheiro e a cor da liberdade conquistada pela luta constante em favor da dignidade humana. Por seu valor como registro histórico, pelo bom uso da linguagem, a leitura de O diário de Mary Berg é mais do que recomendada: é essencial!

CARLOS EDUARDO BEZERRA é doutor em Letras pela Unesp.


SERVIÇO

O DIÁRIO DE MARY BERG - MEMÓRIA DO GUETO DE VARSÓVIA - Obra da sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, Mary G. Berg. Tradução: Geraldo Galvão Ferraz. Editora Amarilys/Manole. 352 pags. Preço: R$ 49,00.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários ofensivos de qualquer espécie, discurso de ódio e propaganda serão removidos. Hatred speach and propaganda comentarys will be removed. Para atrapalhar os spammers vc terá que digitar a palavra de verificação.